27.9.10

Réu primário

- Jura dizer somente a verdade, nada mais que a verdade? Sim, disse ela, assentindo levemente com a cabeça. Ela jurava muitas outras coisas naquele momento, mas agora era a hora da verdade, que rastejava-se aos seus pés toda a noite, ao som de I Pagliaci, sem lhe dar o consolo do sono. E começou:
Ele realizava pequenos furtos, quase diariamente. E eu não ligava, fingia que não via, pois não passava de alguns beijos roubados, olhares furtivos. Em sequencia, ele me tirou o direito de ir e vir, ao algemar nossos corpos e sussurrar suas sentenças no meu ouvido. Tirou-me a liberdade de expressão, manipulando meu maxilar e meus lábios para que tudo o que saísse da minha boca não passasse de um palavreado desgovernado em língua estrangeira, sem contexto algum , senão o dele. Esse amor hospedou-se clandestinamente no meu sistema nervoso central. Parece ludibriar meus neoronios a fim de me controlar por completo, divergindo-se de todas as cláusulas do nosso contrato. Uma das piores partes é a tortura; o amor sapateou nos Direitos Humanos, pondo-me em condição de refém e expondo-me às piores agonias de amor e paixão. Criminoso, ele, que, finalmente, acabou por roubar-me de mim, sem ao menos ser decente o bastante para oferecer trégua. Hoje, então, acordei meu coração advogado e saí do meu cárcere privado para acusá-lo, esse amor viciado em domínio e onipresença, que vendou meus olhos e vendeu meu futuro por um tostão. Ele é minha úlcera, minha catarata, minha arritmia cardíaca, meu câncer. Meu amor me dividiu em soluços e fantasmas. Ele que pague o preço de matar todos os demais sentimentos! Jogue-o na cadeia, ela clamava, e deixe a chave da cela comigo, ela, a mulher amada.

Fez-se silêncio na corte. O juri ponderava as evidências, o juiz registrava o testemunho e, sentado no banco do réu - como que sentado em uma cadeira elétrica - estava o amor ditador, que, acossado, deslumbrava, "confortavelmente entorpecido", o crime de sua existência. A verdade, agora, agonizava ao som de Nessun Dorma.

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