27.3.11

Pio

Minha hora favorita é quando só se ouve, talvez, os pingos que pingam na pia da cozinha. É quando eu me dou conta de que eu e você somos um 'ainda' (o que eu pensei que não poderíamos ser). Ainda que nada mais faça sentido. Ainda que você seja um iludido, eu me sujo de fantasia que só nós podemos ver. Eu sou ainda o que ainda é você. E, assim, somos, nós, dois aindas, que insistem em ser. Essas verdades cotidianas só são apresentadas aqui, entre os pingos caídos, escorrendo pelo encanamento e desaguando não se sabe onde. No silêncio dessa hora surda. E, ainda assim, somos um pio, um assobio bonito como ainda podemos ser.

23.3.11

Já que hoje eu "vi estrelas"

Comecei com Bilac, mas isso não é parnasiano, não, de modo algum. Aqui eu escrevo apenas um bilhete, nada mais que um bilhete, e eu não sei porque. Não sei porque o escrevo, desconheço o que tenho a dizer. Mas essa noite escolhi não ter escolha e apenas descrevo meu sentimento para você, estranho que me lê. Meu sentimento é esse: eu não sei ser. Faz sentido? Não responda. Não quero sequer que esse bilhete faça sentido. Espero que ele não seja meramente lido, pois simplesmente não se encaixa nas coisas que eu faço. Eu sinto como se fosse de outro espaço, como se meu eu fosse imensamente pequeno e minimamente abundante, e se escondesse atrás da casquinha. Da forma de pessoa, minha pessoa se contém e não conta a ninguém. Mas eu conto agora a você, que desconheço, mas que me lê. Isso só porque hoje eu vi as estrelas; preciso me fazer dizer.

14.3.11

Famintos

Olhos de corvo incinerantes, me pegam desprevinida quando acordo para o gole d'água de madrugada. Asas de corvo batem famintas, e fazem um rebuliço selvagem na minha querida, partida, vontade de esquecer. Patas de corvo polidas, buscam, cheias de graça, minha esperança moribunda, de enfim parar de me preocupar com meu magnífico destino, meu pretérito contundente e todas as células do meu corpo. Por que preciso, meu deus, pensar tanto? Ter consciência da gravidade na pele, como penas negras, é, ao menos, normal? Só sei que meu normal é me assombrar com minha própria vida, e ser perseguida pelas infinitas versões de mim mesma que guardo em minha garganta. Eu olho para o corvo de olhos ardentes, asas famintas e patas polidas, e só então enfrento meu medo de jamais esquecer cada detalhe de mim. No minuto seguinte, pisco para meus olhos ardentes, e, paradoxalmente, enfrento meu medo de me perder entre voos vazios de um futuro carente.

13.3.11

Um par de sonhos

Alguns sonhos existem em nós sem a pretenção de se tornarem realidade do lado de fora. Desejos que, sonolentos, as vezes beijam as pálpebras de seu dono , revelando sua essência sem se impor. Alguns sonhos nascem somente para serem sonhados e, assim, não morrem nunca pois jamais serão plenamente realizados. São feitos para serem incompletos de realidade, para que preencham a nossa própria com seu teor utópico. E isso tem tanta beleza, como um paraíso particular privado para onde se pode recorrer nas horas do dia em que se fazem necessários. Uma pausa programada para uma trama já conhecida; os sonhos esquecidos no imaginário da mente, no inventário do coração. Uma sensação que pode ser sentida ao se deparar com uma memória remota encostada no canto do tempo, em portas fechadas, em copos vazios, em pequenos tesouros encontrados pela casa, em marcas na almofada, em receitas de vida mal resolvidas. Pequenos sonhos existem em pequenas coisas do dia a dia, que enriquecem a felicidade com um brilho simplório. Pequenos sonhos são feitos de segredos sagrados protegidos por pálpebras sonolentas que beijam os olhos. Pelo sabor do beijo não dado, eternamente idealizao. Daí se extrai a maior parte das alegrias; do pouco que se é dado, aos tropeços, por um sonhador cançado da realidade na qual se afunda. Pequenas brisas de momentos felizes, são o par de sonhos que calçam os pés que tocam o chão.